segunda-feira, 1 de março de 2010

Devemos mentir para salvar a vida de um amigo? – Não, diz Kant (1)

kant

Immanuel Kant (1724-1804).

Um filósofo francês, Benjamin Constant, criticando a teoria ética de Kant, referiu:

«O princípio moral “é um dever dizer a verdade”, se se tomasse incondicionalmente e de um modo isolado, tornaria impossível qualquer sociedade. Temos disso a prova nas consequências muito imediatas que desse princípio tirou um filósofo alemão, o qual chega ao ponto de afirmar que a mentira dita a um assassino que nos perguntasse se um amigo nosso e por ele perseguido não se refugiou em nossa casa seria um crime

Kant respondeu-lhe do seguinte modo:

«(…) Se, por exemplo, mediante uma mentira, a alguém ainda agora mesmo tomado de fúria assassina, o impediste de agir és responsável, do ponto de vista jurídico, de todas as consequências que daí possam surgir. Mas se ativeres fortemente à verdade, a justiça pública nada pode contra ti, por mais imprevistas que sejam as consequências. É, pois, possível que após teres honestamente respondido com sim à pergunta do assassino, sobre a presença em tua casa da pessoa por ele perseguida, esta se tenha ido embora sem ser notada, furtando-se assim ao golpe do assassino e que, portanto, o crime não tenha ocorrido; mas se tivesses mentido e dito que ela não estava em casa e tivesse realmente saído (embora sem o teu conhecimento) e, em seguida, o assassino a encontrasse a fugir e levasse a cabo a sua acção, com razão poderias ser acusado como autor da sua morte, pois se tivesses dito a verdade, tal como bem a conhecias, talvez o assassino ao procurar em casa o seu inimigo fosse preso pelos vizinhos que ocorreram e ter-se-ia impedido o crime. Quem, pois mente, por mais bondosa que possa ser a sua disposição deve responder pelas consequências, mesmo perante um tribunal civil, e por ela se penitenciar, por mais imprevistas que possam também ser essas consequências; porque a veracidade é um dever que tem de considerar-se como base de todos os deveres (…).

Ser verídico (honesto) em todas as declarações é, portanto, um mandamento da razão que ordena incondicionalmente e não admite limitação por quaisquer conveniências.

(…) o dever de veracidade (do qual apenas aqui se fala) não faz qualquer distinção entre pessoas – umas em relação às quais poderíamos ter este dever, outras a propósito das quais dele nos poderíamos dispensar – mas porque é um dever incondicionado, que vale em todas as condições

Kant, “Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade” em Paz perpétua e outros opúsculos, tradução de Artur Morão, Lisboa, 1992, Edições 70. pp 173-177.

2 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde.
Segundo Kant,tal como o professor ensinou, nunca se deve mentir em qualquer circunstância, mas eu estive a falar com familiar meu e ele fez-me a seguinte pergunta: "E o que é que Kant diz acerca de omitir a verdade?" e eu fiquei pensativo e não encontrei resposta.
O que diria Kant sobre "omitir a verdade"?

Alexandre Neto 10ºC

Carlos Pires disse...

Boa noite Alexandre.
Desculpe o atraso na resposta.
Não me lembro de ter lido em nenhum texto de Kant referências à omissão da verdade enquanto coisa distinta da mentira.
Mas, se tentarmos aplicar as ideias de Kant a essa questão da omissão da verdade, julgo que teremos de distinguir as situações em que a omissão da verdade constitui uma forma de engano (ainda que 'tecnicamente' distinta da mentira) das situações em que não há engano - embora essa distinção nem sempre seja clara nem fácil de fazer. No primeiro caso, a ação não passa pelo teste do imperativo categórico. No segundo caso, julgo que passa.
Exemplo do primeiro caso: uma pessoa conta a outra um certo acontecimento, mas omite propositadamente aspetos relevantes e isso faz com que ela forme uma ideia errada do aconteceu. Exemplo do segundo caso: X sabe que A fez uma asneira e B não sabe. B não sabe que X sabe e não lhe pergunta nada acerca disso. Se a asneira não for um crime ou qualquer outro comportamento grave, terá X o dever de contar a B? Talvez não.
Mas há provavelmente mais situações possíveis além dessas. O que acha o Alexandre?