domingo, 9 de agosto de 2009

Sofista ou surfista?

A Surfista. jpg

A Surfista, fotografia de Gustavo Moreira Tavares (tirada daqui). 

Os sofistas - pensadores gregos, cujos nomes mais conhecidos são Górgias e Protágoras – foram os primeiros a reflectir sobre o poder persuasivo da palavra. Foram também educadores: ensinavam aos cidadãos gregos a retórica, preparando-os assim para participar na vida política da polis.

No Fédon, Platão atribui, por intermédio de Sócrates, as seguintes características aos sofistas: “(…) é mesmo o filósofo que vos fala, aquele que ama o saber, e não um desses homens sem sombra de cultura, que amam apenas o triunfo das suas teses! Refiro-me aos que, em qualquer tipo de discussão, relegam para segundo plano a natureza real das questões a tratar, e se empenham exclusivamente em convencer os seus ouvintes das opiniões que eles mesmos sustentam (…).”

Destes pensadores, além das referências efectuadas por filósofos posteriores, não chegaram até nós mais do que fragmentos dos escritos originais. Como por exemplo este, da autoria de Górgias (séc. V a. C): “Nunca me falta assunto num discurso”.

A má fama, talvez injusta, que a palavra “sofista” adquiriu – sinónimo de manipulador, daquele que, numa discussão, não olha a meios para alcançar os seus fins – tem em Platão um dos seus principais responsáveis.

Do ponto de vista platónico, o sofista é, por oposição ao filósofo, aquele que pretende convencer o auditório, independentemente da verdade. Assim, em vez de procurar persuadir de forma racional e lógica, recorre a todo e qualquer tipo de subterfúgios. Se necessário utiliza argumentos intelectualmente desonestos, que nada têm a ver com a discussão do assunto em causa, como por exemplo o ataque às características pessoais do interlocutor, o apelo aos sentimentos do auditório, o uso de ameaças, a utilização da autoridade de forma ilegítima, entre muitos outros (designados em Filosofia por falácias informais).

Uma das principais objecções de Platão às ideias dos sofistas prende-se com o facto destes defenderem o relativismo (Protágoras afirmou “o homem é a medida de todas as coisas”). A ideia que a verdade depende do ponto de vista de cada um e, por isso, não existe uma verdade objectiva que possa ser partilhada por todos.

Platão, no diálogo intitulado Górgias, levanta algumas objecções à perspectiva relativista. Se fosse correcta, como se poderia distinguir o verdadeiro do falso? Que sentido faria as pessoas discutirem, se nenhuma opinião poderia ser considerada errada, por mais absurda que fosse? Se cada um possui a sua verdade para quê trocar argumentos? Que valor teria a procura do conhecimento?

Platão conclui que a troca de argumentos só faz sentido no pressuposto de que não estamos condenados ao domínio da subjectividade - não vivemos no reino das opiniões, argumentamos racionalmente para nos tentarmos aproximar da verdade.

Estas considerações vêm a propósito de notícias recentes relativas à vida política portuguesa: a apresentação das listas e dos programas eleitorais dos vários partidos. Percebi, de súbito, devido a este estímulo exterior, o significado de um erro cometido por alguns dos meus alunos ao escreverem surfista em vez de sofista.

Como é que se pode confundir a arte de bem falar com a arte de usar a prancha?

Uma forma possível de explicar este equívoco linguístico é: os sofistas ao abdicarem da procura da verdade e ao recorrem a qualquer meio para alcançar as suas conveniências pessoais – como frequentemente observamos entre os políticos – estão, tal como os surfistas, a cavalgar a onda.

Existem afinidades que nem sempre são evidentes…

Nota: A citação de Platão foi retirada do seu livro Fédon, Lisboa Editora, 1997, pág. 87.

6 comentários:

Manuela Serafim disse...

A diferença é que os surfistas não destroem as ondas e a maioria dos políticos destroem aquilo em que tocam.
duvido que esses políticos saibam muito sobre os sofistas, mas pensam como eles - "Nunca me falta assunto no discurso"!
Pois não: faltam é ideias!

Sara Raposo disse...

Podemos não ter um conhecimento filosófico de certos assuntos e, no entanto, colocarmos em prática ideias sobre as quais nunca reflectimos. No diálogo intitulado "Crátilo", Platão refere-se ao filósofo como aquele que olha o que já viu.
É verdade que o desempenho da maioria dos políticos não nos satisfaz. Contudo, não reflectirão as aspirações destes políticos aquelas que são comuns a grande parte dos portugueses? Não espelham os ideais e os valores - veiculados em casa, pela escola e pela sociedade, entre outros - de muitos portugueses?

É fácil indignar-nos e condenar a imoralidade alheia : "os políticos são todos iguais". Talvez seja importante perceber a sua razão de ser e o papel que nós cidadãos, por omissão e passividade, também desempenhamos para isto acontecer.

Manuela Serafim disse...

Sara:

Acho que não percebi o que escreveu sobre o "Crátilo". nunca li esse livro, embora o tenha em casa.

isso dos políticos serem parecidos a nós ou não. Temos todos responsabilidades pois temos, mas dizendo apenas isso conseguir-se-á diferenciar quem tem muitas e quem tem poucas?

gosto dos seus posts! fazem-me pensar

Sara Raposo disse...

Manuela:
A citação de Platão pretendia dizer, no contexto em que a utilizei, o seguinte: a actividade dos filósofos é, além da apresentação e discussão de argumentos, uma tentativa de clarificar conceitos que utilizamos habitualmente sem nos questionarmos sobre o seu verdadeiro significado, por exemplo: “liberdade”; “conhecimento”, “justiça”; “amizade”; ”felicidade”, entre muitos outros. Julgamos saber (utilizando a linguagem de Platão) a sua definição e só quando temos de reflectir (voltar a pensar – olhar para aquilo que julgamos saber – é que damos conta do seu carácter discutível e da necessidade de argumentarmos para defender um determinado ponto de vista. Daí que, de certo modo, em Filosofia se fale e se reflicta acerca de conceitos que já conhecemos (olhamos aquilo que já vimos) e utilizamos, só que de um ponto de vista diferente do senso comum.
Penso que a corrupção dos políticos é, em parte, resultante da falta de civismo, da inexistência de um ambiente em que se discutam ideias e da passividade de muitos portugueses, que não participam activamente na vida pública e não reivindicam os seus direitos, continuando a reverenciar a autoridade (seja ela de que natureza for): esta atitude observa-se em Portugal em diversas áreas e nas escolas em particular (como tenho observado). Claro que o reconhecimento deste facto não invalida que existam diferentes graus de responsabilidade - maiores e mais graves - consoante a posição hierárquica do cargo. Por outro lado, julgo que a análise e a discussão deste assunto poderá contribuir para uma mudança de atitude: que bem precisamos!
Agradeço as suas amáveis palavras e espero que este blog lhe possa ser útil.

Manuela Serafim disse...

Obrigado Sara. Deu-se a imenso trabalho, mas acho que agora percebi.

Anónimo disse...

se pudesse tinha posto gosto no seu comentário sara xD