sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Poema sobre a democracia

DEMOCRACIA

Fui dar com a democracia embalsamada, como
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
unguentos e colónias, queimavam-lhe incenso
e haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
cheirava a cemitério, como se esperasse
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
que lhe dessem família e descendência. Esperei
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
a última verdade do mundo? «Que queres?»,
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»

Nuno Júdice, A Matéria do Poema, Dom Quixote.

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